Aquele gol que eu escrevi #36
Trigésima sexta edição de uma newsletter de gols e outras coisas mais
Na primeira edição desta newsletter um dos lances mais famosos da Copa do Mundo de 1970, um quase-gol de Pelé, foi o mote para a escrita de um texto que tratou do imperfeito, daquele desajeito que abre espaço para outros olhares.
Hoje - diretamente de BH, no meio de um feriadão muito esperado por aqui, ainda em êxtase por conta da decolonial vitória flamenguista de virada sobre o Chelsea ontem - retorno à clássica Copa que trouxe o tricampeonato para a Seleção Brasileira, para falar sobre uma jogada perfeita, aquele encaixe que só coletivas relações nos trazem.
Vamos ao gol do tri!
“O desapego do eu” ou “O afeto e o afetado”
A planta clama a água
para si.
Só que umedece o todo
quando cresce.
Encharcados, venceremos.
David Hume, pensador britânico do século XVIII, dizia que o eu nada mais é do que um feixe de percepções. Em contraposição ao racionalismo cartesiano que ficou marcado pela famosa máxima (eu) penso, logo (eu) existo, o empirista Hume entendia que as sensações - vívidas, reais, palpáveis - seriam mais fortes do que as ideias e cada nova sensação vai se acumulando dentro de nós. Isso que chamamos de eu seria um grande filtro de todas elas. É preciso, sim, alimentá-lo, mas além do eu, existe muito mais.
Copas do Mundo disputadas no México geralmente rendem grandes histórias. Já tivemos por aqui um texto sobre o lendário gol de mão de Diego Maradona, feito na Copa de 86, no México.
Hoje, vamos para a primeira Copa disputada no México, em 1970, que marcou o tricampeonato da Seleção Brasileira; uma das maiores utilizações políticas de um time de futebol por parte de um governo ditatorial e, por último, mas não menos importante, um dos maiores times de futebol da história, que tinha em Pelé, o seu camisa 10, a maior estrela de todos os tempos dentro das quatro linhas.
Só que ao redor do Rei do futebol, orbitavam outros astros igualmente brilhantes. Unidos, foram os responsáveis pelo último gol daquela Copa do Mundo, feito há exatos cinquenta e cinco anos, numa tarde de 21 de junho. Uma obra de arte coletiva.
Pouco mais de um ano depois da promulgação do AI-5 (Ato Institucional nº 5), um dos golpes mais vis e cruéis da Ditadura Militar Brasileira (1964-1985), a Seleção Brasileira viajava para o México em busca de um inédito tricampeonato mundial e da conquista definitiva da Taça Jules Rimet.
Depois de um bicampeonato em 1958, na Suécia, e em 1962, no Chile, a Seleção protagonizou uma enorme decepção na Copa de 1966, na Inglaterra, que viu os donos da casa ficarem com o título. Decepção essa que precisava ser superada. Nada melhor para os torturadores e seus asseclas do que ver associado ao seu governo ditatorial o sucesso do escrete canarinho.
O técnico brasileiro que acompanhou o desenvolvimento da Seleção depois da Copa de 1966 até 1969 foi João Saldanha. Crítico ferrenho da Ditadura Militar e membro do Partido Comunista Brasileiro, ele não resistiu ao jogo político que envolvia o seu lugar de comandante da equipe e foi dispensado do cargo. Assumiu o seu lugar Zagallo, que já havia sido campeão como jogador e naquele momento buscava o seu primeiro título mundial enquanto técnico.
A dispensa de João Saldanha meses antes da Copa, contudo, não foi a única interferência direta do governo militar:
“Uma semana depois de sua demissão, a Loteria Esportiva foi regulamentada no Brasil. Por meio das receitas angariadas com o jogo de apostas chancelado pelo Governo militar e a Caixa Econômica Federal, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) — atual CBF —, então sob o comando de João Havelange, turbinou seus cofres. Rapidamente, os lucros da loteria se tornaram a principal fonte de renda da entidade, que pode investir alto na preparação brasileira para a Copa”.
A seleção que “presenteou” a ditadura com uma taça - Breiller Pires.
Todo esse investimento deu resultado: o Brasil conquistou o tricampeonato no México e ao voltar para casa os jogadores, claro, posaram ao lado do então presidente militar, Emílio Garrastazu Médici, e uma instrumentalização do feito futebolístico entrou em cena. “Pra frente Brasil” e outras patriotadas do tipo associaram cada vez mais o futebol brasileiro à ditadura brasileira.
Muito embora seja impossível separar o futebol e a política e por conta disso fiz questão de trazer essa sórdida relação do Governo militar com o time que levou o tri, dentro das quatro linhas quem ditava os rumos do jogo não era nenhum ditador, mas sim uma série de craques que pareciam se conhecer de outras vidas.
O Brasil fez uma Copa quase perfeita, anotando, nos seis jogos disputados dezenove gols e sofrendo apenas sete. Nos seis jogos, seis vitórias. Na estreia, contra a Tchecoslováquia e nas semifinais, contra o Uruguai, o time comandado por Zagallo saiu atrás do placar, mas conseguiu reverter com sobras o revés inicial.
Com sete gols, Jairzinho foi o maior artilheiro do Brasil na competição e recebeu o apelido de “furacão” da Copa. Gérson, com sua canhotinha, sua malandragem e sua visão de jogo, recebeu o prêmio Bola de Prata do torneio. A Bola de Ouro eu dou um doce pra quem adivinhar com quem ficou… O Rei do Futebol, é claro, Pelé!
Destaques individuais à parte, aos quarenta e um minutos do segundo tempo da final, já com 3 x 1 no placar e com a certeza do tri batendo na porta, o Brasil mostrou para as mais de cem mil pessoas que estavam nas arquibancadas do Estádio Azteca e para tantas outras que acompanhavam pelo rádio ou pela TV (a Copa de 70 foi a primeira a ser televisionada em cores), a força coletiva daquela equipe.
A Itália saía pelo lado direito do seu campo de defesa, tentando ao menos diminuir o resultado naquela reta final de partida e o camisa 9 Tostão voltava para marcar, se doando defensivamente e fazendo com que Everaldo conseguisse desarmar o italiano que àquela altura ainda tinha algum tipo de esperança. A bola sobrou então para o próprio Tostão, que devolveu para o zagueiro Piazza iniciar a construção de uma ação ofensiva brasileira.
Os toques na bola, a partir daí, são todos tranquilos e conscientes, de quem entende muito bem o que está fazendo, o que era o caso de todos os jogadores daquele time. Clodoaldo, o primeiro volante, driblou quatro italianos, manteve a posse de bola, tocou na esquerda para Rivellino e este, com um lançamento preciso para Jairzinho, fez essa jogada ultrapassar o meio-campo.
O “furacão” da Copa recebeu pela esquerda, cortou para o meio e tocou para Pelé. O eterno camisa 10 dominou e, sem pressa ou afobação nenhuma, deu o tempo que tinha que ser dado para Carlos Alberto Torres, capitão do time, chegar pela direita, fazer a ultrapassagem e receber a bola limpa, se oferecendo para o chute.
Pelé entregou essa bola como quem entrega um presente, com açúcar e com afeto, e o Capita concluiu uma construção coletiva da melhor forma possível: decidido, certeiro, intenso. Um chutaço de direita que estufou as redes de Albertosi, o pobre goleiro italiano que nada pode fazer.
Se vivo fosse e quisesse adicionar ao seu rol de sensações e experiências uma boa partida de futebol, David Hume certamente teria encontrado um lugar no meio das arquibancadas mexicanas e diria que esse gol é uma mostra clara do desapego do eu.
Esse gol é a representação em movimento dos versos que escrevi e escolhi usar para abrir o texto de hoje: quando alguém cresce e não se fecha em si, o todo é afetado. E é no afeto que a gente se molha, se lambuza, se liberta.
Depois de esgotar o tempo regulamentar…
Deixo como indicação da seção complementar da edição de um hoje uma comédia brasileira, lá de 2016, que conta a história do roubo da taça Jules Rimet.
Além de mostrar um pouco da enorme confusão gerada por esse roubo, o filme conta com Paulo Tiefenthaler, o eterno Paulo de Oliveira do Larica Total, como um de seus protagonistas e isso, por si só, já vale a indicação. Fica aí o trailer:
Aproveitando as delícias da capital mineira nesse feriado prolongado, me despeço e já deixo o aviso: grandes craques passarão por aqui nas próximas edições! Aguarde, recomende aos amigos, e confie!
Por hoje é só!
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R.