Aquele gol que eu escrevi #26
Vigésima sexta edição de uma newsletter de gols e outras coisas mais
Depois de dois sábados seguidos com compromissos escolares, hoje tive o prazer de acordar mais tarde, sem despertador e sem pressa e posto, com tranquilidade, o texto do dia.
Hoje falo de um daqueles gols que já foram muito comentados e muito vistos e por isso mesmo não tenho pretensão nenhuma de reinventar a roda. Quero apenas trazer o meu olhar sobre ele.
Vamos à mão, à consciência política e à genialidade de Diego Armando Maradona!
La mano de los jubilados
Fosse o futebol uma ciência exata, possivelmente só os jogadores mais altos, fortes e sem muito comprometimento social fora das quatro linhas seriam destaques dentro das mesmas e lembrados pelas torcidas como os grandes nomes deste esporte.
Ainda bem que as coisas não são assim. Diego Armando Maradona contraria todos os pontos aludidos no parágrafo anterior e por conta disso e de muitos outros motivos é até hoje o maior jogador do futebol argentino.
Sua morte, em 25 de novembro de 2020, trouxe uma tristeza a mais para um histórico e conturbado 2020, marcado principalmente pela pandemia. O fim da vida de Dieguito, ainda envolto em um certo mistério e com acusações de negligência médica a alguns profissionais de saúde, gerou uma comoção ímpar na Argentina e nos corações de todos aqueles que, como eu, amam o futebol.
Maradona transcende e muito o campo e bola e um posicionamento dele de trinta e três anos atrás foi ressuscitado nos últimos meses por conta de uma séria situação envolvendo os aposentados de seu país e o atual (e execrável) governo de Javier Milei:
Seis anos antes de dar essa declaração, o eterno camisa 10 argentino viveu, talvez, o maior jogo da sua vida. Um jogo que significou muito para a Argentina e no qual ele anotou o famoso gol de mão, la mano de Díos, tema do texto de hoje.
Diego Armando Maradona, desde antes de se transformar na histórica e folclórica figura que viveu sessenta anos na Terra, mas que possivelmente seguirá muito vivo, de outras formas, até o fim dos tempos, foi um retrato do que normalmente se pensa quando a imagem de um futebolista argentino é evocada.
Manha, malícia, força, garra, deboche e, claro, cabelos. Está no lugar comum do futebol associar todos esses elementos ao jogador argentino. Só que Maradona literalmente transfigurou o lugar comum.
Penso que não foi sem motivo o palco daquele que é talvez um dos maiores jogos da história das Copas do Mundo ter sido justamente o Estádio Azteca, na Cidade do México. A ancestralidade mexica, que está nas raízes do povo asteca, responsáveis pela criação dos códices, das chinampas e de tantas outras tecnologias originárias, combina muito bem com a genialidade e a perspicácia de Dieguito.
Dizem que de contextos conturbados surgem soluções inovadoras, inesperadas. É aquele papo reto de que “até no lixão nasce flor”. E o que dizer do contexto político argentino das últimas décadas? Golpe e ditadura militar entre os anos 60 e 80, coisa comum para boa parte dos países latino americanos nesta época; convulsão social e política nos anos 90, advinda de um déficit fiscal que teve início no governo de Carlos Menem; crise no início dos anos 2000, com três diferentes presidentes entre os últimos dias de 2001 e os primeiros de 2002, só para citar alguns dos capítulos mais deploráveis dessa história recente.
Foi em meio a tudo isso e muito mais, que Maradona surgiu e acabou se transformando na figura máxima do futebol do nosso país vizinho. Mesmo tendo passado boa parte dos anos 80 e 90 em terras europeias, atuando primeiro pelo Barcelona, depois pelo Napoli (clube no qual ele mais se destacou e fez história) e por fim, já no início da década de 90, tendo uma passagem não muito memorável pelo Sevilla, ele jamais esqueceu as suas origens e o seu povo.
Naquela tarde do dia 22 de junho de 1986, o clima criado para o embate válido pelas quartas de final da Copa do Mundo do México, entre Argentina e Inglaterra, também envolvia elementos políticos. Quatro anos antes, os dois países haviam se envolvido na Guerra das Malvinas. Um sangrento conflito pela posse de arquipélagos situados no Atlântico Sul, próximos à costa argentina.
O confronto, naquele ano de 1982, deixou centenas de mortos de ambos os lados e acabou contribuindo para o desenrolar político dos dois países. Com a derrota nas Malvinas, o governo ditatorial argentino perdeu também sua força interna e antes mesmo da Copa do México foi deposto; já pelo lado britânico, a vitória acabou alavancando os planos neoliberais da “Dama de Ferro” Margaret Thatcher, que foi reeleita primeira-ministra nas eleições de 1983 e continuou executando uma série de medidas no mínimo questionáveis.
Todo esse cenário fez com que o duelo entre Argentina x Inglaterra da Copa de 86 adquirisse um valor que foi além das quatro linhas. Vencer, para os argentinos, era, simbolicamente, revidar a derrota da Guerra das Malvinas, era vingar também uma eliminação em Copas do Mundo ocorrida vinte anos antes, quando a Inglaterra, jogando em casa, venceu a Argentina e caminhou para a conquista do seu único título mundial até os dias de hoje.
Essa mistura de futebol e política, temperada com um extremo calor mexicano, como que potencializou a qualidade, a vontade e a singularidade do camisa 10 argentino. Era vencer ou vencer e depois de um primeiro tempo sem gols, bastaram dez minutos da segunda etapa para que Maradona marcasse não apenas um, mas dois gols.
O primeiro veio depois de uma bola rebatida na entrada da área inglesa. Pequenino perto dos grandalhões defensores ingleses, Maradona não se intimidou, viu a oportunidade quando a bola subiu e antes que ela fosse interceptada pelo goleiro Peter Shilton, colocou a mão na bola, fazendo com que ela entrasse calmamente nas redes inglesas. A indignação por parte dos adversários foi, é claro, imensa. Só que para Dieguito essa mão não era dele, era de Díos, era a malandragem latino americana sendo usada para burlar uma regra básica do futebol, mas ao mesmo tempo sendo usada para vencer o adversário europeu e colonialista.
De todos os exemplos históricos de resistência pacífica e desobediência civil que conheço, talvez um dos pontos que mais me chamam a atenção seja o de você conseguir conhecer e dominar bem as regras para só então poder quebrá-las. Se a razão da reclamação inglesa com o árbitro tunisiense Ali Bin Nasser por ter validado o gol de mão existia, razão, regra ou zagueiro nenhum poderia conter o que Maradona fez quatro minutos depois de colocar a mão naquela bola.
Não posso fazer um gol de mão? Estão reclamando desse absurdo? Então eu vou lá e driblo seu time inteiro. Mostro que com a bola nos pés ninguém consegue parar um pibe que se reconhece parte do seu povo. Que venham um, dois, três, quatro, cinco, seis ingleses, todos os obstáculos são transpostos e a bola, mais uma vez, vai morrer no fundo das redes inglesas.
A Inglaterra até conseguiu diminuir o placar no fim da partida, com um gol de cabeça do seu artilheiro Gary Lineker, mas naquela tarde, a glória ficaria para os hermanos e a história se curvaria a Maradona.
Naquela mesma tarde, longe do México, aqui mesmo em Juiz de Fora, também nascia o primeiro filho de Dona Hélia e Betão, aquele que viria a se tornar um grande amigo meu, mais um dos presentes que a Manchester mineira me concedeu: Douglas, ou simplesmente Dodô.
Muitas foram as tardes em que nós, na saudosa Casa Caos, compartilhamos bons momentos e em vários deles essas lembranças de gols e jogos antigos faziam parte das pautas do dia.
Por tudo isso e por ter nascido talvez minutos antes ou depois do histórico gol de mão de Maradona, dedico esse texto a ele e à memória do pai dele, José Roberto, o eterno Betão, que nos deixou no ano passado.
Eu faço isso porque eu via refletida na luta diária do Betão, um pouco da luta dos jubilados argentinos. As décadas passam e alguns dos mesmos problemas que assolavam os aposentados lá no início da década de 90, quando Maradona deu a forte declaração que acompanha o texto de hoje, voltam a acontecer. Não dá para normalizar ou não se indignar com isso.
Deixo aqui o meu gesto de solidariedade a todos aqueles que conhecem o seu lugar e sabem que o Brasil e a Argentina são muito maiores do que esses idiotas que recentemente assumiram o posto de presidente desses dois países tão importantes.
Depois de esgotar o tempo regulamentar…
A indicação de hoje da nossa seção complementar é o livro “Maradona”, de Guillem Balague, lançado no Brasil pela Editora Grande Área:

Assim que fiquei do sabendo do lançamento logo adquiri o meu exemplar, mas como ainda não tive tempo de ler, deixo essa brecha aberta para poder falar um pouco mais sobre o livro num próximo gol de Maradona que vier a ganhar destaque aqui na newsletter.
Porque com certeza o eterno camisa 10 argentino aparecerá novamente por aqui!
Um excelente fim de semana, pessoa leitora!
Por hoje é só.
Fica aquele apelo de sempre: leia, curta, comente, compartilhe, assine… Todo esse processo que ajuda bastante nesse universo virtual!
R.