Aquele gol que eu escrevi #31
Trigésima primeira edição de uma newsletter de gols e outras coisas mais
A edição de hoje chega bem cedinho e o motivo, quem já conhece a Aquele gol que eu escrevi há mais tempo sabe bem, só pode ser um: hoje é sábado letivo para este que vos escreve!
Assim como na antepenúltima edição, deixo com que um acontecimento quente, da semana, fure a fila dos textos previamente planejados e ocupe um lugar de destaque.
Ao ficar sabendo do falecimento de José Mujica, na última terça, dia 13 de maio, quase que imediatamente eu mesmo me perguntei: “Você escreveu texto fazendo referência à morte do Papa e não vai escrever sobre o Mujica?”
É óbvio que a resposta foi negativa e cá estamos para mais uma edição que relembra um dos gols mais famosos da história do futebol e homenageia a vida, a luta e o legado deixado por um dos grandes líderes políticos e humanos do nosso tempo!
A sobriedade inflamada
Cada frame craquelado e em preto e branco que compõe o registro desse gol carrega consigo um dos eventos mais traumáticos da história do futebol brasileiro.
O dia 16 de julho de 1950 ficou eternamente marcado nos corações e mentes que ali estavam e é devidamente lembrado pelas gerações futuras como uma das grandes derrotas da Seleção.
Quando o atacante uruguaio Gigghia conseguiu vencer o goleiro brasileiro Barbosa, aos trinta e quatro minutos do segundo tempo, dentro de um recém inaugurado Estádio do Maracanã, sob o olhar de mais de cento e setenta e três mil pessoas, ele cravou um punhal na alma do futebol brasileiro que, até então, nunca havia vencido uma Copa do Mundo.
No entanto, por ter sido o país sede daquela edição do Mundial, pelo ótimo desempenho ao longo da competição, pela possibilidade de ser campeão apenas com um empate naquela partida, o Brasil tinha todo o favoritismo ao seu lado.
Todos esses elementos reunidos como que já davam uma certeza de festa para os milhares de brasileiros que estavam ali. Só que com o chute de Gigghia essa certeza se esvaneceu e se transformou em tristeza.
Além da tristeza, esse gol, esse jogo e tudo que o cercou também foi metamorfoseado em livros, filmes e demais registros históricos e artísticos sobre o que é conhecido até hoje como “Maracanazo”.
Longe de qualquer pretensão de aprofundamento sobre o tema, o que iria me custar, certamente, muitas horas de deliciosas leituras e análises, que infelizmente não possuo no momento, trago esse gol que ilustra tão bem a força do futebol uruguaio para falar um pouco sobre outra potência uruguaia: José Alberto Mujica Cordano ou, simplesmente, Pepe Mujica.
Em várias das edições anteriores desta newsletter, por vezes me deparei com questionamentos que tocavam no seguinte ponto: quais são os limites e as aberturas possíveis entre o futebol, os gols e as tais outras coisas mais, sempre aludidas nos subtítulos dos textos? Digo isso no seguinte sentido: é fácil tornar difusos esses limites e essas aberturas e cair numa espécie de adequação dos gols a temas que quero falar, mesmo sem existir uma real ligação entre o gol e os demais temas. Enfim, é um cuidado que tenho com o que escrevo, uma questão criativa que passa pela minha cabeça antes da mão escrever, e que achei por bem abrir neste momento.
Às vezes pendo para os limites, às vezes descambo para as aberturas, nesse vai e vem sigo exercitando, semana a semana, a busca por um equilíbrio e, de tudo que conheço sobre a trajetória de Pepe Mujica, talvez um dos elementos que mais me atrai a atenção e escolhi para dar título ao texto de hoje é o que chamei de sobriedade inflamada (o que também pode ser lido como equilíbrio).
Imaginar todas as torturas, humilhações e desrespeitos pelos quais passou Mujica ao longo de sua vida é chegar num lugar de ódio e nojo aos responsáveis por tudo isso e esses responsáveis têm nome e sobrenome: militares que instauraram uma ditadura no Uruguai em 1973, repetindo um enredo muito comum a vários países latino-americanos.
O simples fato daquele jovem progressista, que nasceu no bairro Paso de la Arena, em Montevidéu, e ainda adolescente vendia flores para ajudar a família, ter sobrevivido a tudo que passou naqueles anos de chumbo que só se encerraram em 1985, é uma vitória, maior do que qualquer vitória dentro dos gramados. Para vencer tudo isso, ele precisou se inflamar contra a injustiça, o ódio e a truculência. Não dá para ter meias palavras contra a destruição - física, moral, humana.
Toda a luta de Mujica e a de muitos outros uruguaios não foi em vão. A democracia voltou a existir no país em meados dos anos 1980 e já na década seguinte, o torcedor do modesto Cerro, clube do seu bairro de origem, tornou-se deputado (1994) e na sequência senador (1999).
Com a eleição de Tabaré Vázquez para a presidência do Uruguai no ano de 2005, Mujica foi designado como ministro da Agricultura e nos anos seguintes pavimentou o seu caminho para a disputa da presidência. Eleito em outubro de 2009 pela Frente Ampla, Pepe Mujica assumiu o cargo máximo do seu país no ano seguinte e comandou um mandato de cinco anos.
Penso que foi justamente nesse período que a figura de Mujica ficou mais conhecida para além das fronteiras latinas. Muitas foram as entrevistas e posicionamentos firmes e inflamados do ex-guerrilheiro e eterno apaixonado pela vida. Ateu convicto, sabia respeitar todas as religiões. Heterossexual e pouco afeito ao uso de drogas, defendeu ativamente as uniões homoafetivas, a descriminalização do aborto e a legalização da maconha.
Todas essas pautas, que no mundo polarizado em que vivemos geram polêmicas, discussões e extravagâncias mil, eram tratadas por Pepe Mujica com uma sobriedade ímpar.
A lucidez em afirmar o que pensa com clareza e sem rodeios; a altivez de, já com um câncer de esôfago que o levou a morte, se despedir da vida pública e dizer que “o guerreiro precisa descansar”; enfim, a grandeza de quem sabe reconhecer a pequenez de cada pedaço de pão, de cada flor que desabrocha em meio ao concreto, de cada sorriso sincero: Mujica é o exemplo perfeito da união de sobriedade com fúria, do calor que vem das entranhas de quem reconhece as injustiças com a frieza de quem olha para a realidade com clareza.
Se o chute de Gigghia deu ao Paisito o seu segundo título mundial, a vida de Mujica deu à humanidade a sabedoria de que é possível pensar, sentir e efetivar um outro mundo.
Depois de esgotar o tempo regulamentar…
Um dos vários podcasts que repercutiu o falecimento de Pepe Mujica foi o sempre atento “O Assunto”, de Natuza Nery. Ele também serviu de base para a escrita do texto de hoje e deixo como uma das indicações desta seção complementar:
Além disso, nunca é demais lembrar dessa clássica fala de Mujica sobre o trabalho:
Sempre um farol, Mujica viverá nas lembranças, nos sonhos e nas lutas daqueles que, como eu, acreditam no valor da simplicidade, do respeito e da gentileza.
Até sábado que vem!
Por hoje é só!
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R.
Rogério, acho muito legal como você costura os gols com os temas! Essa copa de 1950 é realmente um escândalo e inesquecível kkkkkkkkkk e olha que eu nem sonhava em estar na terra kkkkkkkkkk